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Uma aula sobre Angola II


Ricardo Soares de Oliveira investigador focado na realidade angolana e professor da Universidade de Oxford
Ricardo Soares de Oliveira investigador focado na realidade angolana e professor da Universidade de Oxford

"Angola não é uma ditadura como nos anos 1980. Existe um Estado relativamente sofisticado"

A Pública

Ricardo Soares, investigador focado na realidade angolana, conta à Pública que toda a informação em Angola é "propagandeada": "Em geral é uma herança do controle português, é uma herança do regime socialista até 1991, é uma herança da guerra civil. O modo de ser de qualquer ministério ou organização burocrática em Angola é não aportar informação. Mesmo se essa informação for uma informação sem quaisquer riscos, as pessoas não gostam de tomar a iniciativa de partilhar.

Esta é a 2ª parte da entrevista ao professor da Universidade Oxford à Pública:

Seu livro demonstra que tampouco essa falta de distribuição ou planejamento foi por incapacidade ou ineficiência, mas faz parte de uma estratégia…

Temos que ver que o Estado angolano não é um Estado muito competente. Sem dúvida muitas coisas que fizeram mal, fizeram porque o Estado tem pouca capacidade, há muita corrupção, burocracia etc. Mas essa não é a grande explicação. A grande explicação é realmente um plano político mais deliberado. Esse plano político concentra os benefícios da reconstrução nas mãos da elite. É um plano deliberado e que foi implementado de forma relativamente meticulosa em termos de controle não só da economia política da guerra – todas as grandes oportunidades de enriquecimento nos anos 1990 –, mas também a economia da paz. A economia política da reconstrução gerou muitas oportunidades, muitos contratos, e esses contratos foram adquiridos por pessoas próximas do poder.

Segundo seu livro, num momento final da guerra havia uma visão mundial muito mais negativa da comunidade internacional sobre o governo de Angola. Houve alguma iniciativa do regime para renegociar essa situação?

A partir de 2000 o governo de Angola foi muito criticado pelo FMI e por alguns Estados ocidentais, principalmente por algumas ONGs, por exemplo, a Global Witness, pela opacidade do setor petrolífero… Foi acusado de roubar dinheiro, de corrupção. Por conseguinte, o Estado angolano estava muito na defensiva no início dos anos 2000. Ainda por cima, o preço do petróleo estava relativamente baixo, e o regime angolano estava muito endividado internacionalmente. O que aconteceu logo a seguir tem três dinâmicas. A primeira foi o aumento exponencial do preço do petróleo. Subiu seis vezes em cinco anos. Isso deu ao regime muito dinheiro e muito poder.

Foi pra dizer: Se vocês, ocidentais, não param de falar de corrupção e direitos humanos, nós temos aqui sempre outros parceiros disponíveis

Em segundo lugar, foi o fato de eles terem criado uma forte parceria com a China, o que levou a silenciar algumas das críticas ocidentais. O que o governo fez agora foi ter mais opções nas relações externas; por isso, a China foi um fator mais disciplinador. Foi mais pra dizer: “Se vocês, ocidentais, não param de falar de corrupção e direitos humanos, nós temos aqui sempre outros parceiros disponíveis”.

E a terceira, que eu acho a mais importante, foi o fato de mesmo os países que tinham uma atitude crítica frente à corrupção em Angola, assim que Angola começou a tornar-se muito rica, deixaram de falar em direitos humanos e passaram a falar só de oportunidades de negócios. Por conseguinte, não foi tanto a pressão dos angolanos para que seus interlocutores estrangeiros deixassem de falar de direitos humanos. Foram esses próprios países que começaram a pensar de uma forma mais realpolitik, mais concentrada nos negócios. Nesse aspecto, Brasil e Portugal são exceção, porque mesmo na altura em que os Estados Unidos, a Inglaterra e os países escandinavos estavam criticando Angola, Brasil e Portugal tinham uma atitude de completa proximidade com o regime e nunca levantaram essas questões.

Houve mudanças nos pontos criticados por essas potências, como falta de transparência, corrupção, indicadores sociais?

Esse será talvez um quarto fator, muito importante. É o fato de os angolanos que tinham no início dos anos 2000 uma postura adversária em relação a essas críticas muito rapidamente compreenderam que eles poderiam produzir algumas reformas que não fragilizariam o status quo. Dariam a impressão de algumas melhorias, por exemplo, no que diz respeito às contas petrolíferas. O suficiente para as pessoas lá fora poderem dizer: “Ah, Angola está a melhorar, já não é tão mal como era antigamente”. Mas na verdade ou eram medidas neutras por parte do regime ou até medidas que fortaleciam o regime.

Não se poderia ter tornado Angola em uma Dinamarca em dez anos, mas se poderia ter dado um nível de vida muito bom à maioria dos angolanos

Por exemplo?

Por exemplo, as contas petrolíferas serem mais organizadas e menos opacas. Hoje em dia você vê no site da Sonangol e do Ministério das Finanças informações sobre as contas petrolíferas angolanas. Por conseguinte, houve modos relativamente fáceis e sem custos políticos, mas que permitiram ao governo angolano surgir, se não como um governo hiper-reformista, pelo menos não como um governo que estava a resistir a essas soluções externas, não é? E houve também reformas mais macroeconômicas. Nos anos 1990, Angola tinha 8.000% de inflação, em 2010 tinha 9%. Está a ver? Ou seja, melhorias de gestão do sistema que permitiram nomeadamente a criação de um sistema financeiro moderno em Angola. Não é só fachada, mas são medidas que tiveram custos políticos nulos, que o regime pôde adotar porque não iam fragilizar o status quo.

No seu livro, você menciona uma atitude “manipulativa” em relação a dados e informação pelo governo angolano. Chama-o de um dos mais restritivos para realizar pesquisas acadêmicas. Há uma estratégia de segurar o que é negativo e publicar apenas o que é propaganda?

Toda informação é propagandeada. A informação não circula livremente. Em geral é uma herança do controle português, é uma herança do regime socialista até 1991, é uma herança da guerra civil. O modo de ser de qualquer ministério ou organização burocrática em Angola é não aportar informação. Mesmo se essa informação for uma informação sem quaisquer riscos, as pessoas não gostam de tomar a iniciativa de partilhar. A informação relativamente positiva é propagandeada, ou, se não é positiva, tem que ser escondida. Por exemplo, a informação sobre os indicadores sociais como mortalidade infantil, esperança de vida, o número de angolanos escolarizados, o número de crianças na escola… São informações politicamente controladas.

Uma das nossas observações por lá foi o aparato de repressão e o medo, a autocensura que ele gera. Angola é uma ditadura ou uma democracia?

Temos que pôr isso no contexto do pós-Guerra Fria, em que muitos Estados que eram autoritários à antiga tiveram que se redefinir e reinventar num contexto em que a expectativa geral era fazer eleições e viver a democracia. Em todo o mundo, essa transição, essa democratização superficial, aconteceu. Portanto, os estudiosos de ciência política definiram categorias como, por exemplo, semiautoritarismo, sistema político híbrido… Tudo isso é um modo de tentar explicar o fato de que alguns Estados autoritários conseguiram adaptar-se a algumas das estruturas da democracia, por exemplo, fazendo eleições de quatro em quatro anos, mas, longe de serem fragilizados por essas estruturas democráticas, conseguem colocá-las ao serviço da perpetuação da ditadura.

Mas é óbvio que o que acontece hoje em dia em Angola não é uma ditadura como nos anos 1980. Existe um Estado relativamente sofisticado, que pelo menos até 2015 utilizou a repressão aberta de modo muito menos frequente do que nos anos 1970 e 1980, um Estado que organiza eleições no contexto em que controla todo o aparelho e, portanto, consegue controlar o tempo de antena, o acesso à esfera pública da oposição, a cobertura jornalística… E o mais importante, temos um regime que controla as finanças públicas e define mais ou menos a estrutura daquela sociedade. Por conseguinte, é óbvio que nós não podemos falar de Angola como se estivéssemos a falar do Chile de Pinochet, mas estamos a falar de um Estado autoritário à sua maneira.


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